Ed–17–Matéria de capa

por Glaucia Savin

Poli¦ütico

ÉTICA E MORAL CRISTÃS E OS TEMPOS ATUAIS

Como começar a falar de ética nos tempos de hoje? O que é a ética? Ela sofre alteração com a mudança de costumes? Será que sabemos o que ética quer dizer?

Embora muitos considerem os termos “moral” e “ética” como sinônimos, uma sutil, porém importante diferença os distingue: entende-se por moral um conjunto de regras de comportamento considerados como válidos por uma determinada sociedade; ética, é a capacidade de reflexão e autodeterminação de nossa conduta, de acordo com comportamentos que consideramos válidos.

O objetivo da moral é conduzir o comportamento das pessoas, enquanto que no campo da ética estaremos lidando com as nossas escolhas e com a nossa capacidade de decidirmos conforme o que julgamos correto. A ética serve, portanto, para julgar a nós mesmos e não ao nosso vizinho.

Assim, quando falamos em moral cristã, queremos nos referir ao conjunto de ensinamentos legados por Jesus. Segundo Kardec, esta é a parte mais importante do legado de Cristo, tanto é que, de todo o conteúdo dos Evangelhos (os atos comuns da vida do Cristo; os milagres; as profecias; as palavras que serviram para o estabelecimento dos dogmas; o ensino moral), o codificador escolheu somente o ensinamento moral para compor o Evangelho Segundo o Espiritismo, por ser esta a parte que melhor reflete o conteúdo essencial da lição de Jesus. Percebemos que o conjunto dos ensinamentos morais do Cristo, sem qualquer distinção de culto, confere diretrizes ao comportamento humano, de maneira atemporal.

Portanto, quando pensamos em ética cristã, estamos nos referindo à nossa capacidade de incorporação dos ensinamentos de Jesus ao nosso processo decisório, ou seja, à adequação do nosso livre arbítrio e de nossas escolhas àquilo que consideramos justo e válido, desde o momento em que nos definimos como cristãos.

Com Kardec, em O Livro dos Espíritos, aprendemos que o livre arbítrio, ou seja, a capacidade de escolher, é uma conquista do espírito. Quanto maior o nosso grau de desenvolvimento moral, maior é a nossa liberdade de autodeterminação. O espírito ainda mais primitivo, em razão das restrições da sua inteligência e do seu desenvolvimento moral, é limitado em relação ao seu próprio destino.

No momento em que nos tornamos conscientes, aumentamos a nossa capacidade de percepção e análise das consequências dos nossos atos e, portanto, maior liberdade nos é conferida. A liberdade é, portanto, uma conquista do espírito. Nisto, Sartre tinha razão: estamos condenados à liberdade. E liberdade implica responsabilidade e consciência em relação às escolhas que praticamos. Nossa vida é, ao menos em grande parte, o resultado das nossas escolhas e, por isto, é que é tão importante aprendermos a escolher. É disto que trata a ética: das nossas escolhas.

Para realizarmos escolhas, algumas premissas são fundamentais: somos livres e, portanto, responsáveis pelos nossos atos. Por isto, temos que compreender que “nem tudo dá na mesma” e que precisamos começar a prestar atenção ao que estamos fazendo. Tudo isto para começarmos a desenvolver, por meio de atenção e treino, algo que podemos denominar como “bom gosto moral”.

Da mesma forma como treinamos nossos ouvidos para escutar uma boa música, como educamos nossos sentidos para distinguir um aroma, o sabor de um prato ou a composição de um vinho, podemos nos educar em relação às escolhas que fazemos.

Para isto, temos que começar a renunciar às falsas desculpas do tipo: “cumpri ordens” (cá entre nós, não estamos na corte marcial), “perdi a cabeça” (onde ela estava?); “todo mundo fazia a mesma coisa” (e você é todo mundo?, já perguntava a minha mãe), “é mais forte do que eu” (então você é um banana?), “não percebi o que estava fazendo” (essa nem mãe acredita), “tenho sangue quente” (todos os mamíferos têm sangue quente e você, claro, não é exceção) e, por fim, a pior de todas: “estou muito velho para mudar” (ainda é cedo para a próxima encarnação, você não acha?). Ou seja, temos que deixar de inventar desculpas para nós mesmos porque já é hora de nos encararmos frente a frente e decidirmos que não podemos viver de qualquer modo, porque escolhemos ser cristãos.

E o que isto quer dizer?

A moral cristã nos manda “amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos”. Segundo Jesus, isto resume toda a Lei e todos os ensinamentos dos profetas. Muito bem. E como isto funciona na prática? Como exercitamos escolhas éticas, pautadas na moral cristã no nosso dia-a-dia? Afinal, não pretendemos ser morais e éticos somente no centro espírita, não é mesmo?

Já vimos que o primeiro passo é prestar atenção em nós mesmos, ou seja, precisamos nos conhecer melhor e aprender a entender os nossos sentimentos. Erich Fromm diz em uma de suas obras que “ser capaz de prestar atenção a si mesmo é pré-requisito para ter capacidade de prestar atenção aos outros; sentir-se bem consigo mesmo é condição necessária para relacionar-se com os outros”. Meu psicólogo, um cara muito divertido e espiritualizado (sim, as pessoas espiritualizadas podem ter bom humor), chegou a me pedir uma listinha dos sentimentos que eu experimentava durante o dia todo. Funcionou! Aprendi a ter mais consciência do que me fazia bem e do que me fazia mal. Aprendi a lidar melhor com aquilo que não me fazia bem.

É isso aí. Quem está de bem consigo mesmo e enxerga seus próprios desafios e dificuldades, é mais tolerante e compreensivo com as dificuldades do outro. Se nos sentimos bem, tendemos a ver os acontecimentos e as outras pessoas de forma mais positiva. Portanto, o primeiro passo para o comportamento ético funcionar é poder olhar a si mesmo no espelho.

Para isto, temos que desenvolver uma relação pacífica conosco mesmos e com o nosso passado. Afinal, fomos criados simples e ignorantes, mas estamos caminhando adiante e, é claro, já erramos muito, mas temos as oportunidades para consertar tudo (ufa! ainda bem). O que vale é daqui para diante. Temos que fazer do tal “homem velho” um aliado do nosso desenvolvimento e não um inimigo. Precisamos aprender a nos perdoar. Não temos que nos envergonhar dos nossos erros, mas devemos aprender conosco mesmos, inspirando-nos no exemplo de Paulo, o apóstolo, ao afirmar, convicto: “Não sou digno de ser chamado apóstolo, mas pela graça de Deus, já sou o que sou”.

Aliás, quem não se ama, não deve ter cuidado ao tentar “amar o próximo como a si mesmo” porque o tal do “próximo” pode acabar levando pancada à toa. Para amarmos ao próximo, temos que aprender a gostar de nós mesmos; temos que nos aceitar e nos respeitar, o que, é claro, não significa sermos complacentes com as nossas imperfeições. Temos que perceber onde precisamos e onde podemos melhorar a nossa conduta.

A compreensão de nossa situação, como espíritos em desenvolvimento, nos auxilia a entender a nossa semelhança com o nosso próximo. Afinal, estamos todos nesse mesmo barco, denominado “Terra”, há muito mais tempo do que podemos imaginar.

No passo seguinte, começamos a exercitar uma das mais belas virtudes ensinadas por Cristo: a misericórdia, que consiste em nos colocarmos no lugar do outro. Para isto, temos que levar as outras pessoas a sério, compreendendo a situação de cada um, dentro da sua própria perspectiva de vida e da sua história pessoal. Isto é exatamente o contrário de “julgar”, porque quando julgamos alguém colocamos os nossos valores e os nossos sentimentos na balança. Quando falamos no exercício da misericórdia, nos transportamos para o universo do outro e nos aproximamos dele ao invés de julgá-lo.

Aos poucos, começamos a desenvolver a tolerância, ou seja, a simpatia pelo olhar do outro, e acabamos por entender melhor as diferenças e a perceber o que Jesus queria dizer por fraternidade. É assim que começamos a entender a riqueza dos contrastes e das diferentes culturas. O exercício da simpatia pelo olhar do outro, nos permite compreender sua história, seus costumes e sua religiosidade. A tolerância é o único caminho para a compreensão do real sentido da palavra humanidade.

Esse é um processo que requer treino, porque estamos acostumados a parecer “legais”, “espíritas”, “cristãos”, mas nossas intenções e a nossa vontade muitas vezes não resistem às primeiras pancadas e aos desafios.

Meu marido costuma dizer que a gente só descobre se é ético quando dói no bolso. É uma verdade. Percebemos que somos éticos quando nos recusamos a comprar um DVD pirata; quando não compactuamos com o crime organizado adquirindo produtos de contrabando; quando não estacionamos o carro na vaga de idosos (se temos menos de 60 anos, é claro); quando não furamos fila; quando não quebramos a multa de trânsito com o guarda; quando não usamos o “jeitinho brasileiro” de resolver as coisas.

Aliás, fazendo um parêntesis, podemos dizer que a sociedade em que vivemos também é um reflexo de nossas pequenas escolhas. Não podemos nos queixar da corrupção se contribuímos, com as nossas pequenas atitudes e com a nossa cumplicidade, para que este estado de coisas se instalasse (lembre-se: o todo mundo fazia, já não vale mais como desculpa. Se você já esqueceu, volte um pouquinho a leitura para o começo).

A insatisfação com as nossas escolhas é aquilo que denominamos por “remorso”. Quem já sentiu, sabe que não é bom. É isto que o exercício da ética ajuda a evitar, a dor.

Pois bem, temos um treino pela frente: nossa educação moral (não aquela coisa chata da escola), mas a educação do nosso processo de escolhas. Temos que aprender a desenvolver o “bom gosto moral”.

O caminho de cada um é peculiar e particular e, por isto, não tem “receita” pronta e, muitas vezes, vamos nos equivocar. Mas isto não é motivo para desistirmos. O processo de desenvolvimento é lento e gradual. Avançamos um pouquinho por vez.

Ao aprendermos a escolher, pouco a pouco, cada um de nós vai se reconstruindo e vamos nos transformando. O melhor de tudo é que passamos a desenvolver reflexos emocionais novos, ou seja, começamos a reagir de forma diferente às provocações, aos estímulos e vamos tomando consciência de nós mesmos. Quando nos damos conta, vamos perceber que mudamos muito e para melhor.

O mais surpreendente disto tudo é que somos o primeiro beneficiário de nossas escolhas porque, como já disse Jesus “tudo o que fazes, fazes a ti mesmo”. Ele tinha razão.

Para entender mais:

- O Homem Integral – Joanna de Ângelis, por Divaldo Pereira Franco

- Ética para meu Filho – Fernando Savater

- Reforma Íntima sem Martírio – Ermance Daufaux, por Wanderley de Oliveira

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